Momento literário - Vai pra o Inferno, Percival!!! - Conto de Gustavo Vaz

VAI PRO INFERNO, PERCIVAL!!!

Percival morreu. Era com extrema tristeza que todos recebiam essa notícia.

Aquele homem era esforçado, trabalhador, honesto, pai exemplar, marido dedicado. Ah, Percival, como você fará falta! Todos no trabalho, na vizinhança e na família estavam atônitos em saber que este homem cristão convicto e que mantinha mensalmente doações a instituições que cuidavam de pessoas com câncer tinha infartado com apenas cinquenta e dois anos.

A sua família chorava copiosamente desde o anúncio de sua morte. A viúva, Lorena, era uma bela mulher, mas estava um verdadeiro fiapo de gente. Suas lágrimas eram um rio de emoções variadas que varriam a alegria daquele lindo rosto de quarenta e seis anos. Procurava manter a compostura de mulher de classe, mas sentia-se dona de uma tristeza paralisante capaz de fazer aflorar os sentidos mais puros e ingênuos que alguém pode ter. Lorena era realmente o sofrimento em pessoa.

Sua filha única, Amanda, era o orgulho do pai. Estava tão triste que havia se trancado no quarto sozinha para chorar a morte do pai querido e por lá permaneceria até a hora do velório.

Ninguém esperava aquela morte, ainda mais da maneira que aconteceu. Percival estava parado em seu carro esperando o sinal abrir. Na faixa da direita parava uma caminhonete. Quando o sinal ficou verde, Percival seguiu em frente, enquanto o motorista da caminhonete resolvia virar a esquerda quase causando uma colisão entre os dois veículos. Percival abriu a porta e foi tirar satisfações com o motorista da caminhonete que tinha parado à sua frente. Logo viu que era melhor ter ficado em seu carro, pois o outro motorista sacou seu revólver. Percival recuou e foi para seu lugar permitindo que o louco da caminhonete fosse embora sem mais discussões.  Ao sentar em frente ao volante, andou por cerca de quinhentos metros e sentiu um aperto no coração e uma dor monstruosa. Perdeu o controle do carro e bateu em um poste. Horas depois estava morte por infarto.

Sua morte era tão ridícula quanto inesperada. Como um homem sobreviveria a uma ameaça com um revólver, a uma quase batida de trânsito e a uma real colisão com um poste para morrer horas depois por infarto? Enfim, são as ironias da vida (ou da morte).

Deitado estava em seu derradeiro aposento. Lorena havia comprado o melhor caixão para o marido. Não fez questão de economizar para homenagear aquele homem que a fez feliz por mais de vinte anos e que havia lhe dado a sua única filha.

Chegavam pessoas de todos os lugares. Os colegas da empresa vieram quase em comitiva munidos de coroas de flores e sentimentos pelo exemplo de profissional que ali estava. Os amigos do futebol que sempre riam das piadas que Percival soltava durante as “peladas”. A família que admirava tanto aquele homem. E uma mulher bem jovem segurando um bebê chorando sem parar num canto daquele cemitério e acompanhada por um rapaz de uns vinte e poucos anos.

Lorena chorava e recebia os amigos e admiradores de Percival. Não percebia ninguém estranho naquele recinto. Estava vestida de preto para que todos soubessem que ela era a viúva que estava sofrendo mais do que ninguém.

De repente alguém falou: VAMOS FECHAR O CAIXÃO! Nesse momento a mulher que estava no canto largou o bebê nas mãos do irmão que a acompanhava chegou próxima ao caixão olhou sem parar para Percival, enquanto Lorena, estranhando o fato, lhe perguntava:

- Quem é a senhora? Conhece meu marido?

O silencio parecia ter sido combinado. Todos esperavam uma resposta, mas a mulher apenas olhava o rosto de Percival passando as mãos sobre os cabelos grisalhos do defunto. E chorando silenciosamente com um olhar de quem estava perdendo alguém.

- A senhora vai responder ou eu vou ter que chamar alguém para tirá-la daqui? – perguntava Lorena, já desconfiando do que estava por vir.

- Meu nome é Márcia. Seu marido foi o homem que eu mais amei na vida. – respondia resignada pela morte do amante.

- Como assim? - Lorena sem acreditar no que estava ouvindo.

- Percival foi a pessoa que mais me fez feliz na vida. Graças a Deus eu o conheci e dei o filho homem que ele tanto queria. – Márcia olhava os olhos de Lorena que não demonstravam nenhuma reação de ódio ou de tristeza.

O irmão de Márcia ao perceber o peso que havia ficado no ambiente tratou de puxá-la para que saíssem do cemitério.

De repente um barulho de muitas pessoas ao mesmo tempo falando se fez no recinto. Alguns riam e outros reprovavam. Uma velha do trabalho de Percival chegou a dizer que ele nunca a enganou com a sua pose de bom moço e os colegas do futebol brandavam palavras machistas elogiando a disposição que o amigo tinha para encarar duas belas mulheres.

Lorena olhava para o infinito abraçada à Amanda que se sentia desprestigiada ao saber que seu pai sempre quis um filho homem. As duas se apoiavam, mas Lorena começou a sentir algo que até então nunca havia sentido em seus vinte e poucos anos de convivência com seu falecido marido: ódio.

Aquele ódio era tão grande que Lorena não se conteve e começou a berrar no cemitério:

- Seu grande filho de uma puta! Você me enganou a vida inteira! Vai pro inferno, Percival! Você não merece nada que eu te dei. Você não merece uma só lágrima minha! Vai pro inferno, seu filho da puta! Essa foi a primeira e última vez que você me humilhou! E tem mais: você não merece nem esse caixão que eu comprei pra você! Você vai pro inferno, mas vai sem o meu caixão! Devolva meu caixão seu cretino!

Lorena estava descontrolada e nem Amanda e nem ninguém conseguia segurá-la. Empurrou o caixão até que ele caísse da mesa onde estava. Virou o mesmo tirando forças de lugares que ela até hoje não sabe de onde e de uma forma escatológica tirou o corpo de dentro, deixando o falecido de bruços no chão. Cuspiu no marido e foi embora de táxi arrastando o caixão consigo. 

Percival foi enterrado em um caixão comprado às pressas pelos amigos da empresa e do futebol e Amanda foi a única familiar a ficar presente no enterro até o fim para garantir que o safado do seu pai estaria enterrado e nunca mais voltaria para se fazer de cidadão modelo e, com isso, fazer mais ninguém de idiota.

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Gustavo Vaz é pernambucano, de Recife, tem como ídolos ninguém menos que Nelson Rodrigues, Machado de Assis e Chico Buarque. 


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